sexta-feira, 28 de dezembro de 2007



Não se vê sem falha. Ver é uma tentativa de possuir o que é visto. H. Arendt dizia-o: "Uma das infelicidades do ser humano reside no facto de ver e comer não serem o mesmo.". Uma imagem pode despertar em nós o caçador mas nenhuma imagem se dá como presa. A imagem não mata a fome.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

O Rosto e a Sombra



Uma imagem é, sempre, apenas um fragmento. Uma tensão ("Nuvem que nunca se torna chuva" na expressão de Yeats). A "verdade mimética" da imagem (da imagem fotográfica, por exemplo) não se reduz a uma questão de semelhança com o referente. Por isso, numa fotografia em que o passar do tempo apagou a definição da imagem, ou em que a acção directa lhe impôs uma determinada alteração, o que se vê é, ainda, a imagem a lutar para ganhar corpo, a tomar forma a tudo o que (presente ou ausente) pode tomar como seu - rosto e sombra.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007



Foi, finalmente, lançado em DVD o filme de Akira Kurosawa RAN, Os Senhores da Guerra. Creio que Shakespeare nunca foi tão bem filmado. Mas não se trata apenas de Shakespeare, trata-se antes do seu grande tema, a absoluta, terrivel, solidão do poder. Kurosawa encena-o espantosamente. Dança a um tempo formal e informe na qual qualquer razão sucumbe. Filme de elipses, o que ao olhar é dado a ver ´sempre menos do que o que à imaginação se sugere, porque a visibilidade do horror está já instalada no cerne do filme, apenas pode proceder em escalada, assumindo o desafio de dar forma ao que o espectador deve imaginar solitariamente mas que não saberia pensar sozinho.

sábado, 1 de dezembro de 2007



Três tendências Modernas: a substituição do homem pela máquina; a mercantilização da substituição; a fetichização da mercadoria.

sexta-feira, 30 de novembro de 2007



Ao ser iluminada, a noite revelou-se ainda mais escura.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007



Mopsy, a personagem de banda desenhada criada por Gladys Parker nos anos 40, acredita na monogamia ao ponto de conseguir ter várias relações monogamicas ao mesmo tempo. O segredo - simbolicamente representado - está na simultaneidade: vários ao mesmo tempo são só um (princípio metafísico das orgias).

domingo, 25 de novembro de 2007




Desde o final do Século XIX que a publicidade assumiu um papel determinante na construção dos imaginários colectivos. O modo como nos relacionamos connosco mesmos e o modo como nos relacionamos com os outros foi sendo, progressivamente, mediado por regras ditadas pela comunicação de massas. Para a publicidade não existe relação que não seja "relação de poder", relações entre "caçador" e "presa", retratando os "jogos sociais", sejam eles públicos ou privados, como "caçadas" de diferentes níveis e intensidades. O sexo, não foge a esta regra, sendo representado como uma particular caçada. Até aos anos de 1970 o homem é o caçador e a mulher a sua presa fugidia. A partir dos anos 70, com a emancipação financeira, também as mulheres passam a ser caçadoras e também os homens se vêem no papel de presas. Este imaginário é, obviamente, distorcido. Duplamente distorcido, porque se o sexo é uma caçada, não há nele uma definição das posições do caçador e da presa, há antes uma permanente reversibilidade daquelas posições; por outro lado, se o sexo é uma caçada ele não é apenas uma caçada. Aliás, o plano da conquista é muito menos determinante do que o plano da sedução (vale a pena recordar Dom Giovanni).


No belíssimo filme de Joseph L. Mankiewicz, The Ghost and Mrs Muir, Gene Tierney apaixona-se por um fantasma. A situação não deve ser considerada literalmente mas, antes, alegoricamente. Apaixonarmo-nos por um fantasma parece caracterizar bem a nossa condição. É sempre em falha o que sabemos do outro, o que temos do outro, o que guardamos do outro. Ele restará sempre como sombra e a sua sombra restará sempre sob nós. Estar-se apaixonado obriga a esse gesto de descer as escadas, rompendo a noite escura, e como uma frágil chama procurar iluminar o rosto daquele por quem chamamos ou que por nós chama. Certamente: iluminar o rosto do outro é sempre iluminar o seu fantasma.


Vão se multiplicando as imagens que simulam a captação espontânea da intimidade. Somos confrontados com uma "intimidade encenada" e, entrando no jogo, devemos ignorar o simulacro e simular a crença numa realidade que não existe. Necessitamos de intimidade e procuramo-la onde ela não poderá jamais surgir. A isto se chama erro de paralaxe.

sábado, 24 de novembro de 2007



Alan Ladd em "Aluga-se esta arma" sente-se nas mãos do destino. Por mais fortes e "duros" que sejam os magníficos heróis-anti-heróis do "Film Noir" dos anos 40 e 50 revelam sempre uma espantosa impotência. Assim é, também, com Victor Mature em "Kiss of death" ou Robert Mitchum em "Out of the Past". A arma é incapaz de matar o perverso corvo negro de que, sempre, se vê apenas a sombra. O vilão já não figura o mal mas é, antes, um seu instrumento. É o destino que, inexorável, nos tenta e precipita, o verdadeiro mal. Perante este mal metafísico a arma é um adorno. Os heróis começam aqui a tornarem-se no que hoje são: patéticas personagens com estilo.



Vou resistir à interpretação semiótica do cartaz. Trata-se de um cartaz norte-americano, ligado a uma campanha governamental de prevenção da Sífilis e de outras doenças venéreas (VD). Confrontamo-nos com um plano onde os elementos, implícitos e explícitos, têm de ser "discursificados". Esta mesma linguagem gráfica é usada em cartazes de propaganda e em publicidade. O que não se mostra e o que não se diz tende a ser tão forte como o que se mostra e o que se diz. Tal não significa (pelo menos não o significa sempre) que o que se omite - intencionalmente ou devido a códigos de censura - é algo de extraordinário, significa antes que os elementos que remetem para o que está omitido o tendem a amplificar. O discurso gráfico norte-americano faz assim uso de símbolos e ícones que hiperbolizam o que se não dá a ver para melhor manipular a comunicação, para a tornar, em suma, persuasão.


É um lugar-comum dizer-se que os códigos fazem os géneros. A fidelização do olhar passa inevitavelmente por o educar por e para uma linguagem da qual, progressivamente, o próprio olhar se torna operador. O Sexexploitation não era, afinal, uma transgressão dos códigos definidos pela censura dos anos 50, mas uma intensificação desses códigos. Daí tudo (personagens e situações) se abeirar do grotesco. Não há uma nova linguagem, uma nova narrativa ou, sequer, um novo imaginário. Tudo o que caracterizava o cinema norte-americano dos anos 50 está aqui mas caricaturado. Não são simplesmente as mesmas coisas escritas a bold. São as mesmas coisas re-escritas e a bold.


A imagem que se vê acima é uma fotografia de Keith Carter. Um menino sentado num velho banco de jardim, cuidadosamente centrado com a câmara, exibe um enorme chapéu de cone. Não é uma boa fotografia. Keith Carter pretendeu trabalhar a imagem fotográfica de modo a imitar uma velha fotografia. Teriamos assim uma imagem de um tempo longínquo, fixando, para sempre, um menino que entretanto envelheceu, que entretanto morreu, que vive apenas, eternizado no velho banco de jardim, exibindo um enorme chapéu de cone, na "prova" fotográfica. Nada disso aconteceu. Tudo isso vai acontecer. Todas as fotografias são lamentos.



Antes de Foucault publicar a sua "História da Sexualidade", o antropólogo francês (de origem Russa) Marcel Sapir escreveu um pequeno livro sobre o modo como as relações de poder encontravam uma tradução particular nas "coreografias" sexuais. O sexo sempre foi espaço de encenação. As representações do sexo, desde as mais "sujestivas" às mais explicítas, eram, de um modo ainda mais claro, "espaço encenado". As imagens que se propõem a revelar, ao natural, a prática sexual quase sempre eram dominadas pelos mais diversos preconceitos que reduziam a representação a uma grotesca caricatura. O "corpo-sexuado" tende a ser um significante hiper-significado, o que parece querer dizer que o sexo nos não basta. O prazer vem daquilo que ele representa e muitas vezes das correspondências entre o que nós fazemos e o "espaço imaginário" que, através do sexo, pretendemos habitar.



Pai e filho estão estáticos. Separa-os uma distância simbólica. Suficientemente próximos, irremediavelmente distantes. Paul Johnsson, o designer responsável pela campanha, podia ou não conhecer os livros de Edward T. Hall mas revelava um conhecimento, pelo menos intuitivo, da proxémia e uma capacidade para fazer das distâncias, entre os elementos de uma composição gráfica, uma alegoria política. "It can happen here". No cartaz de Johnsson não há lugar (nenhum elemento de identificação ou caracterização). O "lugar" é o suporte da informação. "Here" representa o próprio espaço de comunicação. A mensagem ganha, assim, uma surpreendente ambiguidade. Perdida a liberdade, o que fica é um papaguear propagandístico, sem sentido. Entre nós (receptores) e a mensagem resta, também, uma distância simbólica. Suficientemente próximos, irremediavelmente distantes.


O designer gráfico Emmanuel Polanco decidiu representar um Macbeth dividido ao meio. Trata-se de uma figuração de uma divisão ínsita ao poder (os jogos do ter ou não-ter) mas igualmente constitutiva da personagem de Macbeth. Que esta personagem dual empunhe na mão esquerda o punhal, serve apenas para criar a ilusão de que o "corte" pode ter sido auto-infligido. Pura ilusão. Macbeth representa o poder e a sua assumpção simbólica mesmo no momento de maior fragilidade. Irremediavelmente perdido exibe na mão direira (justamente elidida) a perda e na mão esquerda o poder. Foi sempre assim, mas só agora - à beira do fim - essa condição original se revela.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007



O registo fotográfico fixou a imagem, paralizando as duas mulheres, os seus movimentos, a sua respiração, o fumo do cigarro. A imagem-tempo permite ao espectador a construção de uma narrativa. O que vai acontecer a seguir é decidido por nós num espaço imaginado. As imagens são sempre pretextos. Retiramo-las da sua eternidade e tornamo-las parte do nosso presente. Do que aconteceu ali não resta nada, mas inevitavelmente teremos de partilhar daquela solidão.


Não esperava ver Natalia Vodianova na capa da Egoiste. Na verdade não esperava ver Natalia de todo. Conhecemo-nos há três anos, em Marienbad o lugar mais extraordinariamente fantástico para se conhecer alguém para sempre e, em todo caso, desse que se conhece ficar-se a saber tão pouco. Visitava a Républica Checa a convite de um amigo que recebera em Lisboa a pedido de outro amigo. Viajava com pouco dinheiro, alguns cigarros e dois livros - escolhidos por um momento mais do que por um critério - "A Rosa é sem porquê" do Angelus Silesius e o "Anti-Édipo" do Deleuze e do Guattari. Na noite em que nos conhecemos não dormimos e, já de madrugada, apeteceu-nos apanhar o combóio para Brno; na segunda noite dormimos juntos; na terceira noite desencontramo-nos (desencontramo-nos?) perto da "Shlazar" - chovia na terra e o céu estrelado. Não voltei a ver Natalia até ontem, em que não a vi mas ela surgiu-me imóvel, longinqua, na capa de uma revista ("Songs without words" do John Cale era a música que se ouvia). Sei que nunca, nunca mais nos voltaremos a ver.



No espaço habita agora um silêncio lento. Já se apagou o cigarro de jasmiz que preparei minuciosamente enquanto esperava por ti e do silêncio comunga agora uma progressiva escuridão que, estranhamente, parece ter o poder de iluminar as memórias. Dou-lhes a minha voz para que de mim se aproximem, como um medium que toma corpo à palavra de outro e há no que elas dizem algo que de mim se revela.

(Paro de escrever e procuro, em vão, reacender o cigarro).

Deixas-te caido sobre a cama a "História Natural da Destruição" do Sebald. Deixou-se abrir ao acaso - "o vínculo comum que há entre mim e o mundo, cuja sentença de morte irrevogável reconheço..." - e ao acaso se fechou. Por vezes não sei se me fazes bem.